A história aqui. Roupa, coisas, corpo, ideias. Memória a ser. À vista e ninguém a ver. Tão ela, forma de cor. Na cidade inteira, homens e mulheres. Mais mulheres. Uma ruiva, outra morena. Peito a chamar mãos, lábios a pedirem língua. Alheios. Aquela loura. E ele. Ou rasto dele. Ele a querer vê-las – mulheres - entende-se que as teve. À sua maneira. Imaginação, mestra a desapertar roupa íntima. Colcheias a saltarem, elásticos a tombarem. Mulheres sob seus olhos. Têm a marca. Ele viu-as. Marca. Ele viu-as – longe, perto? - entendê-las é outro mundo. Porquê ele? Talvez ela. E se ele for ela? O sexo não vem no olhar. Que olhar? Talvez nem olhos. Quem lhe conheceu as pálpebras? Ninguém. Talvez retina em lugar de nariz. E a cor, teria tom?, aposto que verde. Era grande, lá isso era. A mãe bem lhe dizia, devia repetir em hora de má nota na pauta: “Ai rapaz, ao menos tens pés para guarda-nocturno”. Dormir hasteado. Disparate.

Chamar-lhe-emos Gigante. Ele. Ou ela. Fiquemo-nos por ele. Baptismo a rimar com carne. Era grande, imenso, cabeça a roçar terceiro andar de prédio. Se tivesse cabelo (seria careca?, julgo que não), melenas a tombar à Beatle, andaria em desalinho, caracóis emaranhados em esquinas de varandas. (Gostava de olhar as modas no estendal.) Falta saber se gordo se magro. Não há retrato, coisa alguma, nem pegada nem roupa esquecida. Mentira: há uma coisa. De mirar, olhar de longe e enxergar perto. Para ver melhor. (No fim comer?) Não, isso é de lobo mau. A sua manha é outra. Boa e papas de milho. Não olha a capuchinhos vermelhos, só homens só mulheres. Coisas também. Não deixou pegada, apenas vestígio de rasto. A vaguear que nem nuvem. Mais carregada, mais suave. De uma palete ou de outra. Um sinal de si, largado no momento último. Binóculos imensos, tamanho de rosto sem fim. Rugas além Equador. Pesados, somente grua ou gigante para os erguer. Caídos.

O Gigante. Ninguém sabe quem ele é. Todos juram nunca o ter visto. Gigante não é assunto, é silêncio. Binóculos largados. Tinha fome de conhecer, desvendar a cidade dos homens – mulheres a viverem nela – isso é certo. Os olhos não fazem cerimónia, banqueteiam-se. Era um estranho. Não por ser enorme, antes forasteiro. Nem da cidade nem do país. Adivinho que nem do mundo. Queria descobrir o que escapava à sua essência. (Faltava-lhe saber que a natureza é filha da circunstância.) Gente, almas numa cidade. E ele, teria alma? Tinha binóculos. Ânsia de saber. Olhou tanto, com tanta força, tamanha incredulidade, que deixou marca. Círculos – de perfeição, de alvo? – carecem respostas. Marcas redondas que nem peça de caminhar em tabuleiro de damas. E elas, as mulheres, a desfilarem à sua frente. Sentir-se-ia atraído? Paixão a refogar artérias. Quem sabe. (Oh, mania de urdir romance...) Elas estão marcadas. Têm a sua marca. Mas os homens também. Na cidade inteira, a marca do Gigante. Rasto do tempo, ampulheta sem descanso, páginas de calendário a girarem. Época em que por ali cirandou. Escondido, ao longe, a ver. Ofício de espiar. O mundo nos seus binóculos.

Tivessem eles voz e contariam os dias de seu dono. Quantas vezes partiu a cabeça nas varandas. O galo feito num poste de electricidade. As noites em que a terra tremeu sob seus passos. O troço de passeio destruído. A derrocada de um prédio na sua mão. Os suores de querer em frente às boîtes. A conversa com o miúdo. Nunca antes ouvira timbre de gente. Um rapaz pequeno, bola de cabedal em botas de borracha, a rematar o seu espanto: “És um gigante!” E ele mais admirado ainda: “Sou? E tu criança!” Uma máquina, sons de zinco, ensinara-lhe a língua e os usos da cidade. “Criança escola. Criança ranho. Ranho secreção. Pingo gripe. Humanos.” O miúdo a ensaiar penalti: “Mãe, mãe! Olha um gigante!” E a mulher a sacudir os ombros: “Não te volto a chamar para a mesa! Anda lá, vá, aqui está um anão”. Falariam ainda das madrugadas passadas ao relento. Corpo estendido ao longo de estrada sem movimento. Quilómetros de estranho a olhar estrelas. Jamais imaginara o céu assim, brilhante na plenitude dos desejos. Às vezes, contava-as. Uma, duas... dez. A sua marca no céu. Círculos. Para sempre lua-cheia. E gémea no firmamento.

Mas os binóculos preferem calar. A verdade sobre si. Odisseia de um gigante encarregue de desvendar os homens. De um gigante enleado na sina. De um gigante e de seus binóculos. Esquecidos no chão de uma cidade. Abandonados por ele, único com dimensão para os livrar de estátua ser. Mas os impossíveis também acontecem. Quem diria? Como crer que a missão teria tão improvável fim? Quem é ele? Onde está agora? Porquês em ideia de olhados. Homens, mulheres, gente com marca. E curiosidade. Que é isto? Círculos perfeitos que nem lentes de binóculos. Curiosidade de Gigante. Quem o enviou? Alguém do universo, outro hemisfério. Agora, pouco importa. Os olhados calam, têm vergonha da marca. Apenas o miúdo puxa o lenço. Assoa-se e jura: “Mãe, vi um gigante!”. Ela finge não ouvir. Adultos são estranhos, não crêem em fadas nem em gigantes.

Durante meses, quantos?, o Gigante vagueou pela cidade. Fusão deles. No mapa, novo nome: Cidade das Marcas. E a verdade escondida. O Gigante. De tanto olhar, tragou o mundo. Quanto mais das gentes observava, melhor se empenhava em cumprir a missão. Ver para ser, tudo o resto a perder sentido. Olhava, olhava e continuava a olhar. A humanidade nos binóculos. Sem descanso, somente espanto. Os passos das mulheres, saias à laia de clave de sol, aturdiam-no. Os gestos dos homens, certeza de pontuação, sacudiam-no. Ao longo de meses, olhou com crença. Tanto que engoliu o que viu. Tanto que deixou marca. Círculos na exacta medida do seu ver. Aos poucos, sem dar por tanto, o impossível. As marcas firmadas nos outros a fazerem-no. Entrarem em si e comporem-no. Comunhão num corpo. Aos poucos, ele a deixar de ser ele. Ele a ser as marcas. Pedaços de gente. E ele a mirrar. Ganhar olhos, nariz. Cabelos para pentear e pés para calçar. Estranhar-se. A nova realidade – mundo de homens – a reinventá-lo. Ele como os outros. Entranhar-se. Pequeno, pequeno. As varandas lá alto, nem esquina para coçar a cabeça. Sentir. Primeiro, o frio. Depois, a vontade de um beijo. E já nem força para erguer os binóculos. Tentou levantá-los, uma e outra vez. Desistiu. Despediu-se. Já não precisava deles. Era homem. De repente, via mais. Melhor. Olhos de alma.

Ana Sofia Fonseca*, para "Giant The Voyeur Project"
*jornalista
Here is the story. Clothes, things, body, ideas. Memory to be. To be seen and nobody’s looking. So true, kind of colour. In the entire city, men and women. More women. One red-haired, another brunette. Breasts calling for hands, lips longing for tongue. Absent minded. That blonde. And he. Or his trail. Him wanting to see them – women – obviously he had them. In his own way. Imagination, master in loosening underwear. Clasps breaking loose, elastics falling down. Women under his eyes. They have the mark. He saw them. Marks. He saw them - far away, nearby? – understanding them is another world. Why him? Perhaps she. What if he is she? Sex does not come in the look. What look? Maybe not even eyes. Who knew the eyelids? Nobody. Maybe retina instead of nose. And the colour, did it have any shade?, I bet it was green. He was big, yes he was. His mother would tell him, would repeat at a bad mark on the board: “Oh boy, at least you have the feet of a night guard”. To sleep standing up. Nonsense.

Let's call him Giant. Him. Or her. Let’s choose him. Baptism rhyming with flesh. He was big, huge, the head skimming a building’s third floor. If he had hair (was he bald?, I don’t think so), long locks hanging down, Beatles’ style, he would walk untidy, tangled hair on balconies corners. (He liked to look at fashion on display.) We don’t know whether he is fat or slim. There’s no portrait, anything, neither a footprint nor forgotten clothes. Lie: there’s something. To examine, to see from a distance and to look closer. To aim better. (Finally to eat?). No, this is bad wolf’s stuff. His trick is something else. Bread and corn porridge. He doesn’t look at little red riding hood, only men only women. Things too. He didn't leave a footprint, only trails. Roaming like a cloud. Heavier, softer. From one or other palette. Its own sign, set free at the last moment. Huge binoculars, the size of an endless face. Wrinkles beyond the Equator. Heavy, only a crane or a giant could lift them. Hanging down.

The Giant. Nobody knows who he is. Everyone swears never to have seen him. The Giant is not a subject, it´s silence. Binoculars left behind. He had a hunger to know, to discover the city of men – women living there – this is certain. The eyes make themselves feel at home, they have a feast. He was a stranger. Not because he was huge but because he was a foreigner. Neither from the city nor from the country. I guess not even from this world. He wanted to discover what was alien to his essence. (He didn’t know that nature is the daughter of circumstance.) People, souls in a city. And he, did he have a soul? He had binoculars. Hunger to know. He observed so much, with such intensity, such incredibility that he left a mark. Circles – of perfection, of target? – no answers. Round marks like a piece walking on a checkerboard. And they, the women, parading in front of him. Was he attracted? Passion stewing arteries. Who knows. (Oh, the mania of plotting romance…) They are marked. They have his mark. But men too. In the entire city , the Giant’s mark. Track of time, restless hour-glass, calendar’s pages spinning round. Time when he was around. Hidden, far away, watching. Spying. The world in his binoculars.

If they had a voice they would tell the story of their master’s days. How many times did he break his head on the balconies. The bump on his head caused by hitting an electricity post. The nights in which the earth trembled beneath his footsteps. The broken sidewalk. The sweat of desire at the doors of nightclubs. The talk with the child. Never before had he heard people’s voice. A little boy, with a leather ball in rubber boots, astonished: “You are a giant!” And he, in an even bigger amazement: “Am I? And you child!”. A machine, metallic sounds, taught him the language and customs of the city. “Child school. Child snot. Snot secretion. Snivel cold. Humans”. The boy rehearsing a penalty: “Mother, mother! Look at the giant!” And the woman shaking her shoulders: “It’s the last time I call you to eat! Come now, please, here is a midget”. They would also talk about the early mornings in the open air. Motionless body lying on the street. Miles of a stranger looking at the stars. He never imagined the sky like this, sparkling and full of wishes. He, sometimes, counted them. One, two…ten. His mark in the sky. Circles. Full moon forever. And twin in the heavens.

But the binoculars would rather be silent. The truth about him. A giant’s odyssey to discover men. Of a giant entangled with fate. Of a giant and his binoculars. Forgotten on the ground of a city. Abandoned by him, the only one with stature to prevent them from being a statue. But the impossible also happens. Who would say so? How could the mission have such an unforeseen end? Who is he? Where is he now? Questions. Men, women, people with marks. And curiosity. What is this? Perfect circles like binocular lenses. Giant’s curiosity. Who sent him? Someone from the universe, another hemisphere. Now, it doesn’t matter. They are silent, they are ashamed of the mark. Only the boy grabs the handkerchief. He blows his nose and swears: “Mother, I’ve seen a giant!”. She pretends not to hear. Adults are peculiar, they don’t believe in fairies or giants.

During months, how many?, the Giant roamed the city. Their fusion. On the map, a new name: City of the Marks. And the hidden truth. The Giant. From watching so much he swallowed the world. The more he observed people, the better he engaged himself in fulfilling the mission. To see in order to be, everything else losing sense. He looked, and looked, and went on looking. Humanity in his binoculars. Restless, surprised. Women’s footsteps, skirts like clavichords, made him dizzy. Men’s gestures, certainty in punctuation, make him shudder. During months, he looked with faith. So much that he swallowed what he saw. So much that he left a mark. Circles equal to his watching. Slowly, imperceptibly, the impossible. The marks left in others making him. Entering him and composing him. Communion in a body. Little by little, he was no longer himself. He was turning into the marks. Pieces of people. He was withering. Acquiring eyes, nose. Hair to comb and feet to shoe. Becoming strange. The new reality – men’s world – reinventing him. He was like the others. Penetrating to the core. Small, small. The balconies high above, no corners to scratch his head. Feeling. At first, the cold. Then, the longing for a kiss. And already not enough strength to lift the binoculars. He tried to lift them once, twice. He gave up. He said goodbye. He didn’t need them anymore. He was a man. Suddenly, he could see better. More. Eyes of the soul.

Ana Sofia Fonseca*, for Giant The Voyeur Project
*journalist