walter hugo mãe
Porque nos auscultam de modo tão intenso e impossÃvel de ignorar as figuras de João Noutel? O que faz com que, sem olhos, nos observem ainda, tão ou mais perscrutadoras do que se dotadas do elemento do olhar, que aqui se deixa apenas implÃcito?
Passar por esta galeria de gente é fundamentalmente enfrentar personagens que, tão perto de serem passivas, e quem sabe até pacÃficas, são na verdade gritantes, devolvendo ao espectador uma atitude crÃtica onde, de facto, pode espelhar-se a nossa própria consciência, entendida como individual ou colectiva.
Desenganemo-nos no colorido pop e da sofisticação inegável das suas peças. A pop é profundamente crÃtica e , ainda que tão imediatamente aprazÃvel, esta pop tem a força dos espelhos, posta diante de nós como se nós próprios fossemos buscados pelo que representam.
A primeira beleza, o tão apelativo resultado de cada trabalho, dá lugar imediato a uma problematização mais complexa, porque o espÃrito de Noutel é problematizante, nunca decorativo, transpondo definitivamente a barreira necessária para que faça arte com imagens que mais comummente relacionarÃamos com a ilustração, mormente para publicidade. A primeira beleza, dito de outra forma, é um isco encantatório que, sub-repticiamente, e porque toda a verdadeira arte traz as suas autênticas perversões, nos atrai para a peça que, numa melhor leitura, completa-se com a submissão do espectador à sua natureza vigilante. PoderÃamos dizer que o rosto que se apagam imagem é o nosso, transferindo-se surpreendentemente para a peça nesse exacto trabalho dos espelhos, conferindo quem somos, avaliando de que modo nos posicionamos na vida, nas coisas tão quotidianas com que nos vamos abstraindo.
Não nos voltamos a abstrair das imagens de Noutel. Sabemos que elas estão ali, açucaradas pelas cores, mas com o amargo dos nossos dias. Estão ali acusando alguma solidão, um estranho abandono, mesmo a partir dessa vida construÃda de bem estar, feita de objectos sofisticados – e a sofisticação tem de ser sempre sublinhada na arte deste artista - , objectos, inclusive, onde a vigÃlia, ou mesmo o diálogo, é um pressuposto, como o gira-discos, o telefone ou os binóculos.
É muito irónica a arte feita assim, com esta componente luxuosa dos materiais em redor de uma perspectiva da contemporaneidade que não nos gratifica, antes nos instiga a repensar as coisas, como se nos obrigasse a sair de um mundo de generalizações para nunca mais podermos generalizar. Sim, poderiam ser imagens publicitárias, mas não são, pelo que temos que reequacionar o que sabemos sobre a publicidade e sobre a arte, sobre o que sabemos sobre a ilustração e a fotografia ou a pintura. Só depois podemos chegar mais perto do que é o trabalho de João Noutel, um hÃbrido de tudo, diria, porque composto desse apelo inicial e do consequente golpe crÃtico, ou porque composto desse luxo e da consequente interrogação sobre o nosso modo de vida. Um hÃbrido também porque, no que respeita aos materiais, opta por um misto de técnicas invulgares que o colocam orgulhosamente só no panorama artÃstico nacional.
É por tudo isto que se torna quase impossÃvel ignorar o ar perscrutador, mesmo que cego, destas figuras. È por integrarem, ao mesmo tempo, o outro e nós mesmos, nesse vazio de identidade onde acabamos por caber, como espectadores e participantes, afinal, do nosso próprio mundo. O olhar omisso de cada rosto, é o nosso, ali colocado pela honesta aceitação da peça como válida representação de quem somos e do que fazemos.
walter hugo mãe
Why do João Noutel’s figures question us in such an intense way that is so impossible to ignore? What makes them, without eyes, observe us if not more at least as deeply as if they had eyes, in this case only implicitly.
To walk through these people’s parade is, fundamentally, to confront characters who are almost passive, maybe even peaceful, but who are indeed shouting, returning to the viewer a critical attitude where, in fact, our own conscience is mirrored, either individually or collectively.
Let’s not be mistaken with the pop colours and the undeniable sophistication of his pieces. Pop is extremely critical and, even though it is so immediately pleasant, this pop has the strength of mirrors, placed in front of us as if we were chosen by what they represent.
The first beauty, the appealing result of each work, immediately introduces a more complex problematic situation, since Noutel’s spirit is problematic, never decorative, definitely transcending the necessary barrier to make art with images more commonly related to illustration, chiefly to advertisement. The first beauty, in other words, is an incantatory bait which, sub-repetitiously, and because all true art carries its authentic perversions, attracts us towards the piece and, with a better understanding, completes itself with the viewer’s submission to its vigilant nature.
We could say that the face disappearing in the image is ours, unexpectedly transferring itself into the piece with the exact work of the mirrors, checking who we are, considering how we stand in life in those daily things in which we abstract ourselves.
No longer shall we abstract ourselves from Noutel’s images. We know they are there, sweetened by the colours, but with the bitterness of our days. They are there accusing some solitude, a strange abandonment, even considering their life is made of well being, and sophisticated objects – and sophistication should always be mentioned in this artist’s work –, objects where vigilance or even dialogue is a motive, like the record player, the telephone or the binoculars.
This kind of art is very ironic, with its luxurious component of materials around a contemporary perspective which does not reward us, but rather compels us to re-think things, as if forcing us to avoid a world of generalities, in order to never generalise again. Yes, they could be advertising images, but they are not, so we must put into perspective what we know about advertisement and art, what we know on illustration, photography and painting. Only after that can we get closer to João Noutel’s work, a hybrid state of everything, based on that initial appeal and the subsequent critical strike, or composed by that luxury and the consequent questioning of our way of life. Hybrid also because, in what regards the materials, he chooses a mixture of unusual techniques that, proudly, place him as a unique artist in the national artistic field.
Because of all this, it is almost impossible to ignore the intense gaze of these figures, even though they are blind. It is because they include, at some point, the other and ourselves, in that void of identity where we finally stand, as viewers and participants, of our own world. The blindness in each face is ours, placed there through the sincere acceptance of the piece as a true representation of what we are and of what we do.